Artigo: A goleada da hipocrisia

Por Rodrigo Tarossi*


No último dia 16 de fevereiro do ano corrente, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em decisão UNÂNIME, julgou constitucionais as leis do Estado e do Município de São Paulo que proíbem a comercialização e ingestão de bebidas alcoólicas dentro dos estádios de futebol. A arguição da inconstitucionalidade das leis foi suscitada por um clube da capital, com objetivo de comercializar bebidas alcoólicas dentro do seu estádio. Rememoro que no ano de 2019 já houve grande campanha de clubes, com apoio da Federação Paulista de Futebol, o #LiberaBrejaSP,que defendia a modulação da lei para permitir o comércio de cervejas dentro dos estádios de futebol do Estado de São Paulo, esforço esse igualmente sem sucesso.

O curioso é que, no ano de 2020, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional uma lei do Estado de Mato Grosso, que dispõe exatamente o contrário da decisão do TJ-SP, ou seja, a liberação da venda e consumo de bebidas alcoólicas dentro de estádios, desde que o teor alcoólico não ultrapasse os 14%.

Na recente decisão que manteve a proibição do comércio de bebidas alcoólicas no Estado de São Paulo, o desembargador relator considerou que “é inegável o efeito negativo do álcool sobre o comportamento humano, sendo de conhecimento geral a existência de episódios de violência associados a eventos esportivos, afigurando-se absolutamente despropositado, data máxima vênia, invocar violação ao princípio da isonomia e tampouco da livre concorrência ou eventuais interesses comerciais e de arrecadação da indústria de bebidas alcoólicas e dos clubes de futebol em detrimento de norma protetiva da segurança de consumidores-torcedores, legitimamente editada pelo Estado-membro e reproduzida na Capital. São questões que, a meu ver, não devem se sobrepor à política de segurança pública até o momento em vigor no âmbito paulista”.

Em suma, o magistrado considerou que, no caso, a política de segurança pública em questão se sobrepõe ao interesse privado. Uma decisão aparentemente prudente, mas que não alcança a realidade fática dentro (e fora) de um evento esportivo, tornando ineficaz a função social da referida decisão judicial.

… a proibição (…) NÃO gera maior segurança aos torcedores, pelo contrário, potencializa o risco, o que denota a ineficácia da legislação restritiva

Vejamos: Para aqueles que frequentam eventos esportivos, notadamente envolvendo o futebol, não é difícil observar que os reflexos da proibição das bebidas alcoólicas dentro dos estádios constituiu um cenário potencializador de riscos ligados à segurança pública. Fato é que a proibição do consumo de bebidas alcoólicas dentro dos estádios de futebol fomentou um comércio de bebidas (preponderantemente clandestino) ao entorno do local do evento.

Nota-se, portanto, que a proibição do comércio dentro dos estádios não evitou o consumo, mas tão somente transferiu seu local. O consumo permanece, agora, sem possibilidade de maior controle e fiscalização, do lado de fora dos muros dos estádios.

O entorno dos estádios acabou se tornando em grande palco, com milhares de torcedores consumindo, diga-se, licitamente, bebidas alcoólicas, aguardando o início da partida para, somente então, adentrar nos estádios.

Iniciada a partida, se instala um outro problema, pois aumentam consideravelmente o volume de torcedores para adentrar nos estádios ao mesmo tempo, tornando o ambiente tumultuado, dificultando o controle de entrada e a revista dos torcedores, a qual, diga-se, falha ao permitir a entrada de diversas substâncias ilícitas nos estádios. Fora isso, o comércio clandestino e a “céu aberto” dificulta a fiscalização, oportunizando, inclusive, o acesso de menores de idade às bebidas alcoólicas.

Enfim, a proibição da comercialização de bebidas alcoólicas dentro do estádio NÃO gera maior segurança aos torcedores, pelo contrário, potencializa o risco, o que denota a ineficácia da legislação restritiva. O remédio tornou-se mais nocivo que a própria doença.

Agora, imaginemos um cenário diferente: a liberação de comercialização e consumo dentro dos estádios (lembrando que bebidas alcoólicas são substâncias lícitas), restrito a bebidas com teor alcoólico reduzido (cerveja, por exemplo), que, em tese, geraria efeitos positivos, dentre os quais: inibiria a venda clandestina de bebidas alcoólicas nos arredores dos estádios; possibilitaria um maior controle de vendas pelos clubes; otimização e facilidade na fiscalização do consumo, e; investimento dos recursos auferidos com a venda das bebidas alcoólicas em infraestrutura e segurança para os torcedores dentro das dependências dos estádios.

Por último, a crítica da proibição da comercialização de bebidas alcoólicas dentro dos estádios de futebol não significa fazer apologia às bebidas, nem mesmo defender interesses corporativos, mas sim demonstrar racionalmente equívocos cometidos por condutas passionais. Há de sermos realistas e não nos deixarmos levar pelas aparências, pela moralidade disfarçada. A hipocrisia é inimiga da razão.


*É advogado, torcedor e Conselheiro Fiscal da Federação Paulista de Futebol.