As relações de trabalho em tempos de coronavírus
Por Dr. Romeu Bicalho*
A calamidade pública instalada pelo novo coronavírus tem provocado alterações em todos os setores da vida humana. Tenho certeza de que venceremos essa guerra, contudo, teremos um “novo mundo” após esse evento. Mudanças no jeito de pensar, no jeito de agir, no simples gesto de nos cumprimentarmos, no jeito como olhamos nossa intimidade, ocorrerão. Aliás, me parece que uma das grandes discussões que teremos que enfrentar é sobre até que ponto permitiremos que os governos interfiram nas relações privadas e acessem nossa intimidade, em nome da segurança diante da possibilidade de novas pandemias que podem vir a ocorrer.
Dado o pedido do jornalista Daniel Nápoli, me limitarei aqui a algumas considerações sobre as relações de trabalho. Mas desde já é preciso ter em mente que todas as relações estão e continuarão afetadas por esse evento mundial que nos aflige.
Um evento de força maior, como é o caso do Covid-19, gera efeitos em todas as relações contratuais, na maioria efeitos negativos. No direito existe a previsão de que eventos de força maior podem levar à mudanças nas relações contratuais e, no caso das relações de emprego, se provocar a extinção da empresa pode implicar na redução dos direitos rescisórios que o empregado teria normalmente. Essa redução, entretanto, só ocorre se ficar demonstrado que, primeiro, houve comprovadamente a extinção da empresa e, segundo, que essa extinção ocorreu por causa da força maior.
No último dia 1º de abril, buscando a manutenção dos empregos, o governo editou mais uma Medida Provisória, a MP 936, autorizando o trabalhador que ganhe até R$ 3.135,00, ou que possua nível superior e ganhe mais do que R$ 12.202,11, a negociar com o empregador, sem a participação do sindicato, a suspensão do contrato de trabalho por até 60 dias ou a redução salarial com diminuição de jornada por até 90 dias. Para os demais trabalhadores, a presença do sindicato é necessária. Em qualquer das negociações, o empregador deverá dar garantia de emprego ao empregado pelo dobro do prazo da suspensão ou da redução salarial que for acordada.
No caso de suspensão do contrato de trabalho, o trabalhador terá direito de receber do governo um benefício equivalente ao seguro desemprego a que teria direito em caso de dispensa sem justa causa. Ou seja, o valor desse benefício pode variar entre R$ 1.045 até R$ 1.813,03, dependendo do salário do empregado. Para as empresas que no ano de 2019 tiveram receita bruta superior a R$ 4.800.000, para a suspensão do contrato o empregador terá que pagar uma ajuda compensatória mensal no valor de 30% do salário do empregado, e o governo pagará mais um benefício equivalente a 70% do valor do seguro desemprego.
Quanto à redução salarial, com a proporcional redução da jornada, ela poderá ser de 25%, 50% ou de 70% do salário do empregado. Nesse caso, o trabalhador receberá do governo um benefício que corresponderá ao respectivo percentual negociado do seguro desemprego a que ele teria direito. Por exemplo, se ele recebia R$ 3.135 por mês, se fosse dispensado teria direito a um seguro desemprego de R$ 1.813,03. Se ele negociou uma redução de 25% do seu salário, terá direito de receber 25% de R$ 1.813,02, ou seja, R$ 453,25 do governo, mais 2.194,50 pagos pelo empregador.
A principal questão que vem sendo colocada pelos juristas é se essa autorização dada pela MP 936, permitindo a negociação entre patrão e empregado sem a participação do sindicato profissional, seria constitucional. Isso porque a Constituição Federal diz que qualquer redução salarial só poderia ocorrer por negociação através do Sindicato dos trabalhadores. Há opiniões contra e a favor da constitucionalidade. A ANAMATRA, Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, emitiu uma nota onde entende que a MP seria inconstitucional. Há, entretanto, conceituados juristas que entendem que, dada a excepcionalidade do momento, considerando que a MP busca a preservação dos empregos e o governo está pagando parte do valor suprimido – além do fato de que seria pouco provável que os sindicatos conseguissem atender todas as demandas para negociação –, a medida seria constitucional.
A fragilidade que o empresariado brasileiro está demonstrando diante desta crise, deve servir para um repensar de todo o ordenamento jurídico. A imensa maioria dos empregadores no Brasil são pequenos e microempresários, que possuem de 01 a 10 empregados, retirando dos seus empreendimentos rendimentos que, por vezes, equivalem ao salário que pagam para seus empregados. São trabalhadores empregando trabalhadores! As grandes empresas, por outro lado, há muito tempo reclamam dos tributos absurdos que lhes são impostos, com encargos sobre a folha de pagamento que desestimulam a relação de emprego, levando os empresários a investirem cada vez mais na automação dos meios de produção, pois quanto mais emprego uma empresa gera, mais ela é onerada.
É evidente que numa crise, a parte mais fraca é quem mais perde. Mas o prejuízo para todos seria menor se tivéssemos uma legislação que desse garantias aos trabalhadores, mas que não onerasse os pequenos empreendedores como ocorre no Brasil, onde eles recebem praticamente o mesmo tratamento que os grandes. Vamos torcer que nossa sociedade tire algo de bom de tudo isso!
* É advogado; Professor de Direito da FADITU; Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra-Portugal; Doutor em Direito pela PUC-SP; Mestre em Direito pela UNIMEP; Assessor jurídico do SINDIABRAS.