Artigo: Responsabilidade civil das plataformas de apostas e seus impactos
Por Dr. Rodrigo Tarossi*
O mercado de apostas eletrônicas no Brasil, ainda em processo de regulamentação, já apresenta dados alarmantes que estão começando a impactar significativamente o mercado financeiro, a distribuição de renda e a saúde pública no país. As questões sobre essa prática envolvem tanto as suas repercussões econômicas quanto às consequências sociais e de saúde, que exigem uma análise cuidadosa sob a perspectiva da responsabilidade civil das plataformas.
Segundo dados do Banco Central, cerca de 24 milhões de brasileiros participam de jogos de azar eletrônicos, com um gasto estimado de 21 bilhões de reais ao mês. Destes, aproximadamente 3 bilhões de reais são provenientes de beneficiários do programa Bolsa Família, o que levanta sérias questões sobre o uso de recursos de programas sociais em atividades de alto risco econômico.
Outro dado que chama a atenção é o aumento expressivo na procura por tratamento em programas de saúde mental voltados para transtornos de impulso, com um crescimento de 480% nos atendimentos. Esse cenário tem semelhanças com o que ocorreu no auge dos bingos, antes de sua proibição, que gera uma preocupação crescente tanto para o governo quanto para os setores financeiros, o varejo e, principalmente, as famílias brasileiras.
Diante dessa conjuntura, é crucial discutir a responsabilidade das plataformas que operam como apostas de quota-fixa (bets) e jogos on-line. A responsabilidade civil dessas empresas pode ser comprovada sob a ótica do Direito Civil, Econômico e da Saúde, uma vez que os impactos causados por essas atividades afetam diretamente o mercado financeiro e a saúde pública.
O volume expressivo de capital movimentado, que chega a R$ 21 bilhões em apenas um mês, indica uma transferência massiva de recursos que poderia, em outras situações, ser direcionada para setores produtivos da economia, como o comércio e a indústria. A concentração de capital em apostas, que é de natureza especulativa, gera um “desvio” de investimentos que enfraquecem setores essenciais ao desenvolvimento econômico, comprometendo o crescimento sustentável do país.
Além disso, uma grande parcela desse capital é proveniente de programas sociais de distribuição de renda, como o Bolsa Família. Essa realidade agrava a preocupação, pois revela que uma parcela significativa dos recursos destinados à subsistência de famílias em situação de vulnerabilidade está sendo utilizada em atividades de risco elevado e baixo retorno econômico e social.
No que tange à responsabilidade das plataformas de apostas, entende-se que elas operam sob uma responsabilidade civil objetiva, com base no risco de atividade, conforme prevê o artigo 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro. Essa modalidade de responsabilidade se aplica a atividades que, por sua própria natureza, geram riscos de ordem econômica e social.
A alegação central é que essas plataformas podem estar contribuindo para desequilíbrios no mercado financeiro, ao retirar liquidez de setores essenciais, como o comércio. Embora operem legalmente, pode-se argumentar que as plataformas têm um dever de cuidado, especialmente quando sua publicidade induz a comportamentos de consumo desenfreados e compulsivos. No entanto, surge o desafio de comprovar o nexo de causalidade entre a atividade das plataformas e os efeitos diretos sobre a economia, em especial que o aumento no volume de apostas prejudica setores econômicos do país.
No campo da saúde pública, o volume de apostas sugere um aumento alarmante no número de pessoas viciadas nesses jogos. O vício em apostas, ou jogo patológico, é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um distúrbio mental e comportamental. Esse problema gera impactos profundos na saúde mental, nas finanças pessoais e nas relações sociais dos indivíduos afetados.
Nesse contexto, as plataformas de apostas podem ser responsabilizadas com base no artigo 186 do Código Civil, que trata da responsabilidade por atos ilícitos. Se for demonstrado que essas plataformas incentivam comportamentos viciantes, seja por meio de publicidade agressiva, promoções contínuas ou ausência de mecanismos de controle sobre o tempo e os valores apostados, elas podem ser responsabilizadas pelos danos à saúde pública.
Outra hipótese de responsabilização é a responsabilidade objetiva pelo risco de atividade, também prevista no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil. O vício em apostas é um risco subjacente à operação dessas plataformas, e a eventual falha na adoção de medidas preventivas ou corretivas, pode ser uma omissão no dever de segurança, resultando na responsabilização pelas consequências à saúde dos jogadores.
As plataformas de apostas têm, portanto, o dever de colaborar com o Estado na implementação de políticas públicas de proteção aos consumidores e de prevenção ao vício em jogos de azar. Entre as medidas que poderiam ser oportunas estão: Estabelecimento de limites diários ou semanais de gastos para os usuários; Disponibilização de ferramentas de autolimitação e autoexclusão para os jogadores; Promoção de campanhas de conscientização e prevenção do vício em apostas; Supervisão rigorosa por parte dos órgãos reguladores, com possível imposição de compensações financeiras por danos sociais e de saúde causados.
A responsabilidade civil das plataformas de apostas pode ser fundamentada tanto em bases objetivas quanto subjetivas, considerando sua atuação e os impactos negativos que essa atividade gera no mercado financeiro e na saúde pública. Dada a magnitude dos valores envolvidos e a gravidade dos problemas sociais associados ao vício em apostas, torna-se urgente uma regulamentação mais severa e uma atuação mais incisiva do Estado. A falta de medidas adequadas pode comprometer seriamente a ordem econômica e social do país.
*É advogado, ex-presidente da OAB-Itu e presidente da 9ª Turma do Tribunal de Ética da OAB/SP.