Assédio também se fantasia

ANA LUÍSA TOMBA

 

A festa mais animada e famosa do Brasil – quiçá, do mundo – começou ontem para os mais foliões. Essa imensa mistura de culturas culmina em, no mínimo, cinco dias de muita música boa e brasileira, festas dos mais variados tipos, diversão, fantasia, e, se tudo der certo, sol.

No entanto, junto dessa lista tão típica brasileira e facilmente querida, há detalhes mal resolvidos de carnavais passados. Assédio, abuso, uso da violência física e moral, e a (sempre presente) objetificação da mulher tornam-se os estraga-prazeres de toda a folia.

Devido à crescente disseminação da corrente feminista dos últimos anos, o carnaval de 2017 pretende ser diferente. Submissão e o cargo de objeto do homem não são mais a realidade de muitas mulheres, simplesmente porque nós não somos obrigadas. Mas o fato é que a diversão desta época do ano termina quando lembramos que somos mulheres; assim como a nossa liberdade, quando não conseguimos andar duzentos metros na rua sem sentir olhares asquerosos de homens que não conseguem nos enxergar apenas como uma mulher, mas nos vêem como um brinquedo, uma coisa sem posse.

As mais frequentadoras das festas, bloquinhos e micaretas sabem o que é se privar de usar uma roupa realmente adequada para os dias quentes por receio do (óbvio) assédio nesses lugares. Segundo pesquisa do Instituto Avon com o Data Popular, 78% das mulheres que frequentam festas de carnaval já passaram por, pelo menos, uma situação de assédio. Por isso fica fácil entender o porquê da maioria optar por camisetas mais fechadas, shorts e saias mais compridas (ou até mesmo calças!), se arriscando a passar mal no meio da multidão. É só colocar na balança. O que é pior: um desmaio por causa do calor ou sofrer assédio e tentativa de estupro?

Já no sábado passado (18), no bloquinho “Casa Comigo”, em São Paulo, uma mulher foi gravemente agredida e teve sua roupa arrancada por um homem. Ela relatou, na sua rede social, que ninguém a socorreu enquanto gritava e pedia ajuda para as pessoas ao redor. Ainda conseguiu ver o agressor indo embora rindo. Reconheço, com muita tristeza, que ela não vai ser a única deste carnaval, muito menos deste ano. No entanto, a união, sororidade e empatia entre nós, mulheres, permanecem inabaláveis e cada vez mais fortalecidas. Um bom exemplo é a campanha “#MinasDeVermelho”, na qual todas as mulheres são convidadas a usarem uma fita vermelha no braço durante as festas, para que sejam reconhecidas e tenham alguém de confiança para procurar, caso passe por uma situação de assédio ou abuso.

Uma conduta machista, por menor e mais inofensiva que pareça ser, intoxica um ambiente inteiro em poucos segundos. Segurar o braço de uma mulher com força, obrigando-a a ficar por perto, a beijar ou a prestar qualquer tipo de “serviço”, chamá-la por nomes humilhantes, usar cantadas ofensivas ou passar a mão não é flerte, não é paquera e muito menos “arte da conquista”. Para quem ainda não entendeu a ideia: a diferença entre abuso e flerte é muito simples. Tão simples que pode ser definida em três palavras: não é não! A clássica expressão “quando um não quer, dois não casam” também se encaixa perfeitamente na diferenciação. Há agressores e assediadores fantasiados por aí, e não só no carnaval.

A questão não é que o carnaval ficou chato porque algumas marchinhas foram vedadas, porque agora “os homens não poderão fazer mais nada” ou porque “ninguém poderá nem flertar mais”. Repito: o carnaval não vai ser chato este ano. Na verdade, com a campanha #MinasDeVermelho e tantas outras, está previsto exatamente o oposto: este carnaval é para ser libertador. Por isso, seguimos juntas.