Artigo: A paternidade, o masculino, a escrita e outras reflexões
Por Paulo Stucchi*
A produção de um livro é sempre uma experiência única para o autor; assim como filhos, um livro nunca é igual ao outro e possui demandas próprias: perfis de pesquisa, tempo de maturação, percalços inerentes à produção, ajustes finais. Enfim, o fato é que nunca saímos iguais de um processo de criação de uma nova obra – na pior das hipóteses, evoluímos como contadores de histórias.
Um exemplo desse delicioso e assustador processo de troca entre escritor e suas obras é meu novo romance, “Um de nós foi feliz”. Quando a diretora da Maquinaria Editorial, Renata Sturm, me procurou com o projeto de romancear uma história real ocorrida no interior do Rio Grande do Sul, imediatamente entendi que estava diante de um desafio. Mas, no momento em que soube o contexto da tal narrativa – a história de abandono de um pai e o resgate da história da família por parte de sua filha mais nova, que seria quem me concederia as entrevistas para a criação do roteiro – notei que estava diante de um desafio ainda maior do que supunha.
À medida que imergia na história familiar de Tânia Volkart e de seu pai, a qual deu origem ao roteiro de “Um de nós foi feliz”, vi-me diante de meus próprios questionamentos como homem e pai. Resumidamente, tudo se passa nos anos 60, quando o pai da Tânia, de origem alemã, abandona a família após a morte do filho mais velho e reencontra, na sua terra-natal, o amor de sua vida. Vários episódios tristes são pontuados, como as tentativas da menina em chamar a atenção do pai, sua indiferença perante ela, a raiva da mãe, que transferiu a Tânia a frustração com seu casamento.
Após a partida do pai para a Alemanha, coube às duas (mãe e filha) engolir suas dores e levar adiante o sustento da família. Sessenta anos se passaram desde então, mas é triste notar quantas famílias atualmente compartilham da mesma história de Tânia e sua mãe – infelizmente, nem todas com o mesmo final feliz, afinal, Tânia conseguiu construir uma família e abraçar sua própria felicidade, perdoando seu pai. A alienação parental é uma dolorosa realidade do universo masculino, que, por vieses culturais e educacionais, disponibiliza ao homem a possibilidade mais fácil e viável de afastar-se da responsabilidade da paternidade.
Felizmente (e escrevo isso com um calor no coração) tal realidade vem mudando com o advento do feminismo e da releitura do papel masculino na sociedade e na família. Ainda que o Brasil esteja aquém de outras sociedades (como a dos países nórdicos) na participação dos pais na criação dos filhos (sobretudo, nos primeiros anos de vida) e nos serviços domésticos, é notória a evolução nesse aspecto. O ponto negativo é que, normalmente, a paternidade responsável (que não é uma virtude, mas, sim, uma obrigação) ainda é mais comum nas classes mais estudadas e com mais acesso à cultura e educação. Além disso, notei, com tristeza, que a história de abandono paterno impacta bem menos em leitores homens (que também são pais) do que em leitoras e em filhos que passaram por tal situação; é como se nós, homens e pais, estivéssemos habituados a essa realidade tão corriqueira que, dessa maneira, não nos choca como deveria.
Ou seja, a luta por igualdade na criação dos filhos tem um longo caminho a ser percorrido, mas prefiro crer que já quebramos a casca do ovo. Nesse percurso, educação e orientação são fundamentais. A alienação parental precisa, sim, causar choque e revolta, assim como causaria o abandono de um filho por uma mãe.
Se a história de “Um de nós foi feliz” traz um quadro triste da paternidade (e um realidade infelizmente comum de alienação parental), pode também ser um alerta da importância que o pai tem para seus filhos – sobretudo, numa sociedade que sobrecarrega a mulher, despejando sobre ela o ônus e bônus da criação da prole e camuflando tal sobrecarga com o argumento do ‘com divino de se gerar a vida’.
Filhos são de responsabilidade de ambos – pai e mãe. E precisam desse equilíbrio e exemplo para que cresçam com boas referências. Neste Dia dos Pais, mais do que presentes e abraços, que nós homens saibamos olhar e reconhecer em nossos filhos verdadeiras dádivas – e que, como tal, precisam de nossa responsabilidade.
*É jornalista, psicanalista e escritor. Autor de oito livros, foi finalista do Prêmio Jabuti 2020 com “A filha do Reich”. “Um de nós foi feliz (2022, Maquinaria Editorial) é seu novo romance.