Artigo: Golpe? Sociedade diz não
Por Gaudêncio Torquato*
Abro este texto sob as primeiras impressões do evento no salão nobre da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, onde o ex-ministro da Justiça, José Carlos Dias, leu, dia 11, quinta, por volta das 11 horas, a Carta em Defesa da Democracia, após discursos de representantes de entidades da sociedade civil.
A inferência mais abrangente é a de que, se havia alguma articulação sub-reptícia para golpear, dia 7 de setembro próximo, a ordem democrática, foi sustada pelo mais incisivo movimento empreendido pela sociedade brasileira nos últimos tempos. A Carta foi um eloquente discurso em prol do sistema democrático e, mais que isso, um vistoso sinal da nossa democracia participativa.
A comunidade levanta a mão e avisa: não toleraremos qualquer desvio autoritário no regime. Iremos às ruas, se for o caso. Viu-se intensa mobilização, comparável em simbolismo ao famoso Comício das Diretas – Já, realizado em 16 de abril de 1984, o último e o maior comício em favor das eleições diretas, que reuniu 1,5 milhão de pessoas no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo.
A projeção que se faz oportuna é de que a corrente em defesa da democracia tende a crescer, face à imagem de pedra jogada no meio da lagoa, que a leitura da Carta nos transmite. Essa percepção se acentua ante a análise dos organizadores e assinantes do documento, que beiram 900 mil pessoas, de segmentos profissionais variados, e originários do meio da pirâmide social. A recorrente comparação que ancora os argumentos deste analista é: as classes médias exercem o poder de irradiar seu pensamento, a partir do meio da lagoa até as margens.
Esse poder é alavancado pela integração das mídias na divulgação do movimento. Desse modo, é bem provável que a defesa da democracia ganhe mais apoios do que a tese do fechamento do regime, e consequente instalação de mecanismos autoritários.
A comunidade nacional, por sua vez, age como a panela de pressão. A fervura precisa que a panela tenha um buraquinho para deixar vazar o ar quente, sob risco de explosão. Os movimentos sociais, as manifestações de ruas, aplausos e urras são o vapor que, ao vazar, deixa o sistema em equilíbrio. O perigo é de ruptura no processo, com forte corrosão social.
O fato é que a comunidade utiliza meios para se exprimir. Exemplos são seus representantes nas Câmaras de Vereadores, nas Assembleias Legislativas nos Estados, na Câmara Federal e no Senado. Quando esses mecanismos não agem a contento ou quando, mesmo sob sua ação, os Poderes Executivos (federal, estadual e municipal) não atendem ao clamor social, a população reage. É quando a democracia participativa entra na arena de guerra. Esse sistema também conta com o plebiscito, o referendo e o projeto de lei de iniciativa popular. Mas, em momentos de crise, como o que estamos vivendo, e sob um ambiente eleitoral polarizado, a sociedade escolhe a ferramenta do aviso direto: a movimentação de rua.
No Brasil, a organicidade social é um dos mais interessantes fenômenos da contemporaneidade. Significa que as massas d’outrora estão dando lugar a grupos, setores, núcleos, alas, que passam a agir em defesa de seus interesses. A isso chamo de poder centrípeto, que vem das margens e vai até os centros, os poderes constituídos. Essa força centrípeta, de lá para cá, é o novo desenho dos poderes da Nação. E quem quiser ter sucesso na política, não pode desprezar tal sinalização.
O Brasil, mesmo que se reconheça a prevalência de padrões tradicionais – o grupismo, o mandonismo – caminha, a passos lentos, porém, graduais, na direção da esfera racional. Que tem na autonomia um dos seus motores. Autonomia quer significar capacidade de o cidadão decidir, sem se valer da influência de outros. Claro, a equação BO+BA+CO+CA (Bolso, Barriga, Coração, Cabeça) poderá influenciar o voto. Devemos reconhecer: já teve mais força no passado.
Hoje, coisas como a Carta aos Brasileiros, harmonia social, desenvolvimento, paz, segurança, igualdade, educação, saúde, mobilidade urbana, habitação, conseguem chegar aos ouvidos do anônimo escondido na multidão. Que eleva sua condição de cidadania e sabe distinguir trololós de compromissos sérios.
Rezemos um Pai Nosso!
*É jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político.