Artigo: Julgamento da parcialidade de Moro
Por Dr. Luís Fernando Clauss Ferraz*
Na última terça-feira (23), a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, decidiu que o ex-juiz Sergio Moro atuou com parcialidade ao julgar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Operação Lava Jato. Evidente que julgamentos envolvendo figuras como Lula por muitas vezes acabam tomando um viés político.
Para melhor compreensão do caso, precisamos voltar no tempo. Tudo começou em março de 2014, com o início da Lava Jato, uma das maiores iniciativas de combate à corrupção e lavagem de dinheiro da história recente do Brasil. Em 2016, Lula passou a ser investigado por suspeitas de que teria recebido pagamentos oriundos do esquema de corrupção na Petrobrás, descoberto na Lava Jato. Uma dessas investigações envolvia um apartamento tríplex do Guarujá/SP.
Até esse ponto, não se observa nenhuma ilegalidade. Afinal, é função da polícia judiciária iniciar investigações para apuração de eventuais crimes. Porém, em 4 de março de 2016, Lula foi alvo de uma condução coercitiva e levado para prestar depoimento no Aeroporto de Congonhas, o que podemos registrar como a primeira ilegalidade observada na condução das investigações, aos menos que chegou ao conhecimento público.
Segundo o artigo 218 do Código de Processo Penal, caso a testemunha regularmente intimada não compareça e nem justifique sua ausência, é dado ao juiz ordenar à autoridade policial sua apresentação ou determinar que, debaixo de vara, seja ela apresentada coercitivamente por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da polícia para a concretização da diligência. Referido artigo de lei é claro, expresso e taxativo quanto à condução coercitiva, sendo autorizado com relação a testemunhas.
Assim, Lula, que era até então investigado e não testemunha, não deveria e nem poderia ter sido conduzido coercitivamente para prestar depoimento, por total ausência de previsão legal. Pouco mais de 3 anos desta grave violação legal, em 22/05/2019, o STF publicou o acórdão da decisão proferida nas ADPF 395 e 444, nas quais se questionava a constitucionalidade da condução coercitiva para interrogatório.
Em síntese, a ADPF 395 impugnava a condução coercitiva para interrogatório na investigação e também na instrução criminal, razão por que seu pedido consistia na declaração da inconstitucionalidade da medida determinada como cautelar autônoma para a inquirição de suspeitos, indiciados ou acusados. A ADPF 444, por sua vez, questionava a constitucionalidade apenas da condução coercitiva para interrogatório em fase de investigação policial.
Em julho de 2017, Lula foi condenado a pena de 9 anos e 6 meses pelo então juiz Moro e, em janeiro de 2018, a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) aumentou a pena para 12 anos e 1 mês de prisão, pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, com início em regime fechado e no dia 5 de abril de 2018. Após rejeição do habeas corpus preventivo pelo STF, Moro decretou a prisão de Lula.
Não bastasse isso, em 19 de fevereiro de 2019 o então juiz autorizou a quebra do sigilo telefônico do advogado Roberto Teixeira e do telefone central da sede do escritório, o Teixeira, Martins e Advogados, que fica em São Paulo. Com isso, conversas de todos os 25 advogados da banca com pelo menos 300 clientes foram grampeadas, além de telefonemas de empregados e estagiários da banca.
Surge então a segunda ilegalidade. E isso por quê? A inviolabilidade da comunicação entre advogado e cliente está prevista no artigo 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994). Segundo a norma, é um direito do advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.
É evidente que o advogado Roberto Teixeira e seu escritório não eram alvos da Lava Jato, mas tão somente um de seus clientes, o ex-presidente Lula. Desta forma, não sendo o advogado investigado, jamais poderia ter sido autorizada a quebra de seu sigilo telefônico. Tal violação as prerrogativas do advogado de defesa acabaram por gerar diversas manifestações de repúdio por entidades de classe e renomados advogados.
Após 580 dias preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, Lula foi solto no dia 8 de novembro de 2019, um dia após o STF ter considerado a prisão em segunda instância inconstitucional. Mais recente, em 8 de março de 2021 o ministro do STF Edson Fachin anulou as condenações de Lula por considerar que foram decididas por um tribunal que não tinha competência jurisdicional para julgar o caso. A decisão atendeu um pedido de habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente em novembro de 2020. Fachin decidiu que a Justiça Federal do Paraná não tinha competência para julgar as quatro ações do processo, passando os processos a ser analisados pela Justiça do Distrito Federal.
Diante de referida decisão, Lula recuperou seus direitos políticos. Fachin declarou nulas todas as decisões da 13ª Vara Federal de Curitiba, que deve acatar a decisão e remeter os autos à Justiça Federal do Distrito Federal, bem como a “perda do objeto”, extinguindo 14 processos que tramitavam no STF questionando a imparcialidade de Moro nas condenações de Lula.
Um dia após a decisão monocrática do ministro Fachin, a Segunda Turma do STF, presidida pelo ministro Gilmar Mendes, decidiu manter o julgamento da suspeição de Moro na sua atuação no âmbito da Lava Jato. Por fim, na última terça-feira (23), a segunda turma do Supremo Tribunal Federal concedeu o Habeas Corpus 164.493 impetrado pela defesa de Lula e declarou a suspeição do ex-juiz Moro no processo do tríplex do Guarujá, que motivou a prisão do ex-presidente.
Com a decisão, o processo, que semanas antes havia sido redirecionado por decisão de Fachin, teve também os atos instrutórios anulados, de modo que nenhuma ação feita pelo ex-juiz Sérgio Moro poderá ser reaproveitada pelo juízo competente. Entretanto, deixando as questões e afinidades políticas totalmente de lado, nos cabe tecer breves comentários exclusivamente com relação à recente decisão. Entendemos que a decisão presta um grande serviço para o Direito brasileiro e para o sistema de persecução penal. Independente do beneficiado pela decisão, todo e qualquer cidadão, por Lei, tem direito ao devido processo legal, com suas garantias constitucionais.
No processo penal, os fins não justificam os meios e não se pode aceitar a violação de direitos e garantias. O Estado tem todos os meios lícitos para obtenção de provas para se chegar à condenação de um réu. No caso em questão, fica evidente que o então juiz Moro desviou-se, e muito, de seu mister, deixando de lado a imparcialidade necessária para condução de um processo, especialmente em sede de processo penal.
Precisamos defender a existência de um processo justo. Independente do réu. Se assim não for, daremos margem à produção de qualquer tipo de prova pela parte interessada, ainda que ilícita. Deixamos registrado que não defendemos a impunidade, ao contrário. Que a punição seja justa e dentro dos limites da lei. Que a lei seja justa para o rico ou para o pobre. Só assim termos a chamada “segurança jurídica” e viveremos no verdadeiro Estado Democrático de Direito.
*É Secretário Geral da OAB-Itu.