Bons companheiros

Resolvi fazer uma doação dos livros acumulados por longos anos de leituras da família.

Não é de forma alguma uma biblioteca significativa, não tem edições raras nem títulos excepcionais, foi crescendo aos poucos, especialmente quando o pai tinha muito contato com editoras da capital, por força de ofício. Reflete as preferências literárias, tem biografias, romances, alguma filosofia e assuntos variados, que podem reconstruir nosso percurso intelectual.

Ainda há muitos livros de química, bem conservados, em encadernações de couro, coisa de mais de cinquenta anos, usados pelo pai na faculdade. Também muita coisa em inglês, herança da avó estrangeira, e os livros infantis, companheiros na rede ou à sombra das árvores do jardim de minha meninice.

Bem, passei duas noites com a cara enfiada nas estantes e pouco evolui nessa “limpeza”. O que era para ser simples e objetivo, acabou se transformando em uma luta entre a mágica que os livros sempre tiveram para mim e a necessidade de renovar, criar espaços para abrigar melhor as novas aquisições.

Mas, como descartar velhos amigos, parceiros de tantas aventuras, que alimentaram a imaginação da criança curiosa e ávida por novidades? Como resolver o que pode ser doado e o que ainda tem muito valor, mesmo que nunca mais seja lido?

As reinações de narizinho, todas elas, foram literalmente devoradas em longas tardes modorrentas, de céu azul com nuvens de carneirinhos, um livro depois do outro, até completar a saga.

Cada nova história trazia uma leva de personagens que durante bom tempo conviviam comigo, eram tão reais quanto as pessoas da casa.

Tinha especial predileção pelas aventuras de capa-espada e pela mitologia grega, conhecia quase todos os habitantes do Olimpo e suas tramas que embaralhavam o destino dos homens.

Depois, lá pelos doze anos, já me era permitido alguns romances. Lembro que chorei semanas a fio com “Meu Pé de Laranja Lima”, não podia ver rabanada nem apito de trem que meu coração doía de lembrar o infortúnio do menino que conversava com a árvore do quintal. Nessa época já era comum passar as noites lendo, apesar das recomendações da mãe – vai estragar sua vista, amanhã cedo tem aula – não tinha jeito, era impossível largar a história antes de chegar no fim.

Acho que foi também por esse tempo que desandei a falar sozinha pela chácara, entretida e dialogando com a gente que habitava nos livros e em mim. Meus irmãos costumavam se esconder embaixo da cama para ouvir minhas prosas imaginárias, rolavam de rir de mim.  A mãe ficava cismada, devia achar que eu não era lá muito certa da cabeça…

Pois não é que aquilo deu nisso! Eu aqui, metida a escrever coisas, sem a menor pretensão de produzir obra literária, mas me divertindo bastante com essa arqueologia pessoal que, para meu espanto, tem alguns admiradores.

A esses abnegados e generosos leitores, meus agradecimentos.

 

Allie Marie Dias de Queiroz
Cadeira 25 da Academia Ituana de Letras