Cidade Cinza

LUCAS GANDIA

 

Dias atrás conversava com uma amiga que, há cinco anos, vive e trabalha na cidade de São Paulo. Entre um assunto e outro, nos recordamos da última visita que a fiz e das fotos que tiramos em frente a uma parede grafitada na Vila Mariana. “Logo também estará cinza”, relatou em tom melancólico. Embora já estivesse por dentro das notícias da capital, aquele foi o primeiro momento em que parei para refletir sobre os impactos do contraditório programa “Cidade Linda”, implantado pelo prefeito João Doria (PSDB) logo nos primeiros dias de mandato. Longa e cheia de prós e contras, a discussão ainda parece longe do fim.

Quem vê Doria vestido de uniforme laranja, óculos de proteção, máscara, avental e motocompressor nas mãos pode até pensar que a tentativa de “limpar” as paredes e muros de São Paulo é inédita. A história, no entanto, está aí para provar que essa luta é antiga. De Jânio Quadros a Marta Suplicy e Gilberto Kassab, muitos outros prefeitos da maior cidade brasileira já tentaram – em vão – combater ou regulamentar a ação de pichadores e grafiteiros. A lição, talvez, não tenha sido aprendida: enquanto não houver interesse do Poder Público em estabelecer um diálogo real, não haverá tinta cinza suficiente para calar a voz das ruas.

Os primeiros grafites de São Paulo surgiram no início da década de 1980, pelas mãos do artista etíope radicado no Brasil Alex Vallauri. Em época de censura e ditadura militar, desenhar nos muros se revelou, sobretudo, como um ato político. Justamente no ano em que se recordam as três décadas de morte de Vallauri, havia expectativa de que o trabalho dos grafiteiros fosse valorizado na capital. Ledo engano. Em 14 de janeiro, o novo prefeito anunciou o fim dos painéis da Avenida 23 de Maio, considerado o maior mural de grafite da América Latina.

A decisão provocou críticas dos artistas e dividiu opiniões entre especialistas em arte urbana. Doria tentou reverter as avaliações negativas com o anúncio da criação de um Museu de Arte de Rua e de uma área específica para grafiteiros e muralistas, chamada de grafitódromo. Ao que parece, o prefeito marqueteiro ainda não entendeu que a cidade é maior que a sala de reuniões de suas empresas.

Segundo pesquisa Datafolha realizada no início de fevereiro, a remoção dos grafites da 23 de Maio desagradou a maioria dos paulistanos. Seis em cada dez (61%) declararam que a Prefeitura agiu mal ao pintar de cinza os murais existentes na via. Além disso, 85% dos entrevistados se mostrou favorável aos grafites em muros e fachadas.

A discussão foi além – e, na última terça-feira (14), uma decisão judicial proibiu que a Prefeitura de São Paulo apague grafites sem a autorização do Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo). Na ação, o juiz Adriano Marcos Laroca, da 12º Vara da Fazenda Pública, argumenta que o apagamento sem aparente critério técnico teria causado irreparável dano paisagístico e cultural. A Prefeitura, no entanto, já está recorrendo da decisão.

Todo esse debate apenas reforça como o grafite é subestimado pelo Poder Público, muito provavelmente porque não representa a estética conservadora da elite. Em Itu, a situação não é diferente. Recentemente, um conhecido artista plástico da cidade se propôs a transformar parte do Passeio Público Marcos Steiner Neto, o famoso “Becão”, em um grande mural com diversas obras ligadas à história ituana. O projeto estava praticamente organizado e até contava com patrocínio, mas foi vetado por integrantes da antiga gestão municipal. Enquanto isso, o local permanece tomado por paredes descascadas e pichadas. Faz sentido?

Hoje, o “Becão” poderia ser cenário de uma iniciativa inédita na cidade e até mesmo ser mais valorizado por moradores e turistas. Se funciona assim em Londres, Nova Iorque e Berlim, por que seria diferente por aqui? Será mais um sintoma do complexo de vira-lata que nos persegue?

Seja em São Paulo ou em Itu, a luta do cinza contra o colorido não fica apenas nas paredes. Ela reflete, sobretudo, a visão de quem ainda acredita que possui controle sobre o avanço do tempo e autoridade absoluta para definir os limites da arte. A estes, respondo com os versos imortalizados por Elis Regina: “é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”.