Ficção ou realidade?

LUCAS GANDIA

 
Resisti por muito tempo aos encantos da Netflix, provedora global de filmes e séries de televisão via streaming. Não por duvidar da qualidade de serviço oferecido, mas sim por medo do que aconteceria após a assinatura – ou melhor, de como lidaria com o “vício” às inúmeras produções audiovisuais disponíveis no catálogo. Mas, como diz o ditado popular, se não puder derrotar seu inimigo, junte-se a ele.

Hoje ao lado de outros cerca de 100 milhões de usuários da Netflix no mundo todo, chamo atenção para a série inglesa “Black Mirror”, antologia de ficção científica sobre tecnologia e comunicação no século XXI. Apesar do tom bastante futurista de certos episódios, é possível estabelecer diversas associações entre as tramas ficcionais e nossas realidades – social, cultural e, inclusive, política. Para quem é apaixonado por comunicação, trata-se de um prato cheio para longos debates.

Após assistir ao primeiro episódio da série, intitulado “Hino Nacional” (“The National Anthem”), inevitavelmente passei a refletir na maneira como nos relacionamos hoje com nossos políticos. No mítico enredo, o primeiro-ministro do Reino Unido precisa tomar uma decisão contra o relógio: para que a princesa sequestrada seja libertada, terá de manter relações sexuais com um porco enquanto todo o país assiste ao ato pela televisão. As redes sociais e a pressão midiática, instantânea e em tempo real, fazem com que a situação rapidamente escape do seu controle. O desfecho da trama, é claro, manterei em mistério, mas certamente permite boas análises a respeito da “vida real” e dos limites entre o público e o privado, sobretudo quando estamos falando sobre personalidades públicas.

Embora uma cidade pequena como Itu já permitisse encontros casuais com vereadores, secretários e prefeito em comércios, festividades, academias de ginástica ou padarias, nada se compara ao contato viabilizado pelas redes sociais nos últimos anos. Ainda que virtual, o acesso fácil aos nossos líderes pode se tornar uma faca de dois gumes para aqueles que ocupam – ou que pretendem ocupar – algum cargo público. Não bastam bons assessores, é fundamental ter bom senso (ou seria o contrário?).

Hoje, o prefeito Guilherme Gazzola (PTB) não é visto somente em eventos oficiais e visitas agendadas ao gabinete. No Facebook, curtimos e compartilhamos seus encontros familiares, viagens, recordações e conquistas pessoais. A sensação é a de que não há mais barreiras entre o homem mais poderoso da cidade e o nosso vizinho. E, sim, de fato, somos todos cidadãos e temos nossos direitos e deveres perante o município. No entanto, a Internet horizontalizou ainda mais essa condição. O próprio Gazzola já havia percebido o potencial da plateia online quando dedicou boa parte da vitoriosa campanha de 2016 às transmissões ao vivo para seus eleitores.

O mesmo vale para os vereadores que compõem a atual legislatura. Se levarmos em consideração que, no ano passado, Reginaldo Carlota (PTB) se tornou o edil mais votado da história de Itu através de uma campanha realizada basicamente nas redes sociais, novamente somos levados a refletir com atenção sobre o impacto da esfera virtual na vida real.

Entretanto, é necessário cautela para que excessos não sejam cometidos. Embora sejamos todos feitos de carne e osso e o episódio de “Black Mirror” retrate uma situação extrema, é importante enfatizar que a vida pública exige postura e comedimento. Discussões tolas e indiretas são comportamentos infantis que não devem – ou ao menos não deveriam – pautar o comportamento de qualquer um de nossos representantes (e muito menos das pessoas que os cercam).

Trata-se de um dilema típico da vida contemporânea e que exige preparo rápido. Nenhum político dos anos 90 teve que se preocupar com a exposição nas redes sociais, até porque Facebook e Instagram são palavras que sequer pertenciam ao nosso vocabulário. Se levarmos em consideração que todas essas mudanças ocorreram em menos de duas décadas, talvez as fantasias futuristas assistidas pela Netflix não sejam tão absurdas assim – e até mesmo este debate já esteja ultrapassado nos próximos anos. Quem viver verá.