O purgatório é aqui

Por Lucas Gandia

Fim de domingo. Família reunida no sofá da sala. Da televisão, berros e mais berros. Momento histórico. Dilma. Lula. Cunha. Temer. Golpe. Um beijo à filha que ainda vai nascer. Deus, Deus, Deus e Deus. Quem tem estômago para tanto horror?

A sessão da Câmara que determinou o envio do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff ao Senado já pode ser considerada, sem dúvidas, um dos episódios mais assustadores da história brasileira. Entretanto, observando a metade cheia do copo, vale uma observação: talvez, agora, a população tenha se dado conta de como estamos mal representados por nossos parlamentares.

Sejamos otimistas, mas não covardes. A culpa é toda nossa. Foram nossos votos que garantiram a predominância do mau-caratismo no Congresso – o mais conservador desde 1964, diga-se de passagem. Esse conservadorismo é, inclusive, reflexo de uma Câmara cada vez mais rendida à bancada BBB (Boi, Bíblia e Bala), formada por parlamentares ruralistas, evangélicos e ligados à segurança pública.

Sem qualquer pudor, a força BBB se manifestou livremente durante as justificativas de voto – majoritariamente favoráveis ao impeachment – no último domingo (17). Segundo levantamento realizado pela Agência Brasil (EBC), os parlamentares usaram a palavra “Deus” 59 vezes. Menções aos evangélicos aparecem 10 vezes, enquanto a palavra “família” surgiu 136.

E como hipocrisia pouca é bobagem, o conceito de Estado laico parece ter sido enterrado com a Constituição. Até mesmo o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), um dos principais alvos da Operação Lava Jato e pivô de uma série de denúncias sobre corrupção, bradou durante seu voto: “Que Deus tenha misericórdia desta Nação”. Esse é o tipo de piada que ninguém gostaria de rir.

Não por acaso, foram raros os casos em que parlamentares mencionaram a questão dos decretos orçamentários usados como justificativa para alegar um suposto crime de responsabilidade cometido por Dilma. Aliás, será que esses deputados saberiam explicar o que são decretos orçamentários e no que consiste a tal “pedalada fiscal”?

Faço o mesmo questionamento à parcela da população contrária ao atual governo federal. Tirando de pauta as justas indignações com uma gestão realmente deficiente, sobram opiniões pessoais – endossadas por uma mídia parcial e por factoides de Facebook e WhatsApp. Aposto que a maioria não saberia explicar os motivos que levaram o Congresso a avaliar o afastamento da presidente.

Assim como já escrevi em outro artigo neste mesmo “Periscópio”, reforço: essa briga não é contra a falta de moralidade. O que interessa, infelizmente, é apenas o poder. Até porque, como um Congresso pode exigir o “fim da roubalheira” se sobre as costas de boa parte dos parlamentares recaem acusações de, justamente, delitos de corrupção?

E por falar em ética, como admitir que um deputado federal justifique seu voto em “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”? A fala de Jair Bolsonaro (PSC) escancara o retrato de um país cada vez mais conservador, reacionário e defeituoso. Como permitir que utilizem a democracia como brecha para exaltar uma das figuras mais temidas do Brasil? Segundo a Comissão Nacional da Verdade, Ustra é responsável pela morte ou desaparecimento de ao menos 50 pessoas e pela tortura de outras 500 vítimas durante o período da ditadura militar.

Para Bolsonaro e sua legião de seguidores, não falta apenas aula de História; falta senso humano. Que o meu Deus, que certamente não é o mesmo citado exaustivamente pelos deputados, os perdoe. Se o filósofo francês Jean-Paul Sartre anunciou que “o inferno são os outros”, eu tomo a liberdade de acrescentar: o purgatório é aqui.