A vitória de João Lingüinha

No final dos anos 60, os jovens de Itu, tinham como lugar de encontro a praça Padre Miguel, o Largo da Matriz, melhor dizendo. Nas bordas da praça rente a via carroçável, as moças passeavam de braço dado umas com as outras dando voltas pela praça, enquanto os homens faziam o mesmo do lado de dentro, só que em sentido contrário. Esse vai e vém era protagonizado por moças e rapazes menos abastados. Porque as moças mais chiques e os rapazes mais bacanas faziam o mesmo tipo de footing, só que no centro da praça, perto do coreto. Resumindo, os mais pobres se paqueravam nas bordas da praça, enquanto que os mais ricos se entreolhavam no centro do largo. Proibido mesmo era namorar no Largo São Francisco, ali, vizinho da Fábrica São Luiz. Quer dizer, era proibido e condenável, mas sempre havia os casais mais ousados que ignoravam essa regra, e lá se divertiam mais livremente. Dizia-se que se peito de moça fosse buzina, os moradores do largo São Francisco, não conseguiriam dormir a noite. Tudo isso me faz lembrar de um cidadão, Misael Pereira, que era mestre na fábrica de Tecidos São Pedro e que residia numa casa que ficava no morro do teatro, atrás da Igreja do Bom Jesus. Ele morava com a mulher Olívia, e a filha Hortência. Eram considerados classe média alta. Acontece que a Hortência que costumava desfilar pelo centro da praça, acabou se engraçando com um garoto conhecido por João Lingüinha, que era um desfilante da borda da praça. O velho Misael e a esposa Olívia, quando souberam dessa paquera, quase tiveram um tróço. Afinal, Hortência deveria namorar alguém do mesmo nível, e o João Lingüinha, além de ser da borda da praça, ainda era conhecido por ser meio malandro. Pra falar a verdade, era bem malandrão e, quando viu pela frente aquela oportunidade, percebeu que não podia perder a chance de subir na vida. Foi assim que Hortência e Lingüinha passaram a namorar escondido, por medo dos pais dela, principalmente de Misael que, habituado a lidar com operários, se acostumou a tratar todo mundo, grosseiramente. Ao lado da casa de Misael, havia um terreno com um muro, o qual lhe pertencia. Era por ali que Hortência escapava para se encontrar com João Lingüinha, retornando às vezes altas horas da noite pulando o muro e entrando em casa sem que os pais percebessem. Certo dia, malandro como ele só, Lingüinha resolveu conquistar a família pela emoção. Bom cantor de serestas como convém a qualquer malandro, reuniu alguns músicos e foi altas horas da noite cantar sob as janelas da amada. Salvador no violão, Moretti no contrabaixo, Manollo Santoro na flauta, Nhô Crécio na sanfona e Gentil no Cavaquinho formavam o grupo que deveria acompanhar o Lingüinha. E este começou: Tu és a criatura mais linda que os meus olhos já viram / tu tens a boca mais linda que a minha boca beijou. A melodia tomava conta do morro do teatro. E Lingüinha continuou mais animado ainda com os instrumentos a lhe inspirar: São meus os teus lábios, estes lábios que os meus desejos mataram / são minhas suas mãos, essas mãos que as minhas mãos afagaram. Nesse momento uma luz se acendeu por trás da veneziana de uma das janelas. E Lingüinha exultou: Sou louco por ti, eu morro por ti, te amo em segredo / adoro seu porte divino e a mão do destino que a mim tu vieste / tenho ciúme do sol, do luar, do mar, tenho ciúme de tudo / tenho ciúme até da roupa que tu veste. Abriu-se então a veneziana, mas quem saiu na janela foi o velho Misael que já foi gritando: “Você canta bem, né João Lingüinha?”. Ao que este retrucou humildemente: “Eu arranho um pouquinho seu Misael.” E o velho furioso: – “Então trate de ir arranhar o olho da sua mãe.” E bateu a veneziana e apagou a luz. No lugar de olho ele usou outro termo que eu não ouso repetir aqui, mas vocês devem imaginar. A atitude do velho deixou João Lingüinha revoltado, e ele, embora consolado pelos amigos músicos jurou que aquilo não ficaria assim. E o namoro continuou escondido. Até que um dia, pela manhã, Dona Olívia, a mãe de Hortência, saiu para comprar pão na padaria dos Guido, na rua Floriano Peixoto. Ao sair notou algo horrível no muro da casa. Entrou de novo e chamou o marido pra vir ver a tragédia. No muro estava escrito: Lingüinha ama Hortência. Só que estava claro uma coisa: a frase fora escrita com xixi. Misael procurou acalmar a esposa: Não vamos morrer por causa disso, né Olívia? Afinal de contas, basta passar uma cal e a gente apaga. Foi aí que ela explicou desesperada ao marido: “- Você não está percebendo Misael? O xixi é do Zé Lingüinha, mas a caligrafia é da nossa filha Hortência…”

Deu certo, os pombinhos se casaram com grande festa em três meses.