Vozes negras de Itu e região: juventude que inspira, resiste e transforma outras vidas
Na quinta-feira (20), celebrou-se o Dia da Consciência Negra. Em Itu e região, jovens, por meio da arte, da educação e da resistência, reafirmam o papel fundamental da comunidade negra na construção cultural. Quatro dessas vozes — Bárbara Andrade, Gabriela Roberta Campos Góes, Matheus Campos e Chell Oliveira —, que representam a força de uma geração que transforma a própria trajetória em inspiração para outras juventudes, falaram ao Periscópio.
Bárbara Andrade

A professora de musicaização, língua portuguesa e inglesa Bárbara Andrade, 32 anos, nascida e criada em Itu, afirma que sua missão é ocupar espaços e abrir caminhos para que outros jovens negros reconheçam sua potência. Atuando na EMEI “Érika Regina Rodrigues” e na Escola Estadual “Regente Feijó”, ela vê a educação como um instrumento direto de transformação.
“Cada aula que dou e cada canção que ensino é uma forma de afirmar que nossa presença importa”, diz Bárbara. Para ela, a identidade negra ituana precisa ser fortalecida e celebrada. “Quando um de nós avança, todos avançamos.”
Bárbara carrega na própria história a força da família e das raízes culturais. Ela acredita que permanecer firme e visível na cidade é uma forma de inspirar outros jovens a valorizarem sua trajetória e ocuparem espaços historicamente negados aos corpos negros.
Gabriela Góes
Aos 22 anos, Gabriela Roberta Campos Góes já carrega múltiplas identidades: é neta, filha e mãe da pequena Dandara, de quatro anos. Sua formação enquanto mulher negra começa na quadra da Escola Estadual “Pery Guarany Blackman”, onde integrou o Grêmio Estudantil e descobriu na arte e no hip-hop caminhos para compreender seu propósito.

Foi nas rodas culturais — especialmente a do Impossível, na Praça do Carmo — que Gabriela encontrou voz e sentido. Recitando poesia marginal, ela transformou sua própria vulnerabilidade em arte. Diagnosticada com ansiedade, depressão e crises de pânico na adolescência, ela conta que a arte salvou sua vida: “Toda vez que algo me abalava, eu escrevia, batalhava, pintava. A arte me tirou de um abismo.”
A pandemia interrompeu os encontros e provocou um bloqueio criativo de três anos, mas Gabriela continuou atuando em ações sociais do hip-hop, em lives e em coletivos.
Hoje, integra o coletivo Sexta Tem Rimas, foi eleita conselheira municipal de Cultura, faz parte do circuito dos Reais, que acontecerá em 2026 em Salto, é contratada da produtora Quinto Elemento e acumula uma série de conquistas desde que venceu o concurso Zumbi & Dandara, em Salto, no ano passado.
Gabriela dedica sua luta a garantir que a juventude negra ituana tenha acesso ao que ela não teve: reconhecimento, estrutura, orientação e espaços de pertencimento. “A minha luta é para que meninas e meninos pretos saibam o lugar que lhes pertence — que é todos. Quero que minha filha cresça sabendo que o mundo cabe a ela.”
Matheus Campos
Filho de Rosália Maria e Nivaldo Aparecido de Campos, Matheus Campos cresceu cercado por movimentos negros, atividades comunitárias e referências artísticas. Neto de Durvalina, líder e gestora da Escola União das Vilas, Matheus teve a infância marcada pelo samba de roda e pelos encontros da comunidade negra ituana.

Por muito tempo, porém, ele não compreendeu completamente o valor dessa herança. “A educação brasileira apagou a história do povo preto, e em Itu não foi diferente”, afirma. O distanciamento inicial deu lugar à redescoberta da própria identidade, principalmente quando percebeu o papel fundamental das escolas de samba enquanto forma de arte e resistência.
A trajetória artística o levou à Escola de Arte Dramática da USP, superando um processo seletivo de alto nível. A partir daí, sua carreira ganhou projeção nacional: participou de espetáculos dirigidos por nomes como Bete Coelho e, no audiovisual, interpretou Lito na série “As Five” (Globoplay), representando um raro casal negro em narrativa jovem dentro da mídia brasileira.
Matheus também reflete sobre sua relação com a identidade interiorana: nascido em Itu ele que atualmente mora na Bahia, se reconhece e se afirma como um homem preto caipira — algo que, por muito tempo, foi alvo de estereótipos.
Hoje, ele toma a própria trajetória como instrumento de inspiração. “Quero que famílias pretas acreditem no sonho dos seus filhos. Eu estou aqui porque uma rede de pessoas acreditou nos meus sonhos”, complementa.
Chell Oliveira
Michel Oliveira Rodrigues da Silva, conhecido popularmente como Chell Oliveira, é graduado em História pelo Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (CEUNSP), formado em 2020. Há mais de 20 anos é militante do Movimento Hip Hop na cidade de Salto, sendo um dos fundadores do Coletivo Família Pátria Nossah, referência cultural e comunitária na região.
Chell atuou como membro do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR) e integrou a Diretoria da Associação Instrutiva e Recreativa José do Patrocínio, uma das entidades negras mais tradicionais do município. Também foi professor e coordenador do Cursinho Popular EPA – Educação Popular em Ação, projeto voltado ao acesso democrático ao ensino superior.

Como palestrante, participou de seminários e eventos promovidos pela OAB – Comissão de Direitos Humanos, Academia Paulista de Direito, Academia Saltense de Letras, além de ações museológicas no Museu da Música – Itu, entre outros espaços que destacam sua trajetória intelectual e comunitária.
É pesquisador independente do Acervo de Memórias do Clube José do Patrocínio e da história de José Maria Marques de Oliveira (Maestro Zequinha). É também idealizador do projeto “Biografias Afro-Saltenses: Histórias e Memórias da População Negra de Salto”, iniciativa pioneira no município voltada ao resgate e valorização da memória negra local.
Atualmente, Chell é vereador em Salto pelo PT, eleito com uma proposta centrada na defesa da periferia e na luta pelos direitos da população negra e dos territórios vulnerabilizados.
Chell compreende que “evidenciar a memória da população negra é uma ferramenta fundamental de visibilidade, reconhecimento e reparação histórica”. Com o projeto Biografias Afro-Saltenses, vem fortalecendo identidades, reconstruindo narrativas e devolvendo pertencimento a pessoas e famílias que tiveram suas histórias silenciadas ao longo do tempo.
“Assim como grande parte do Brasil, Salto também invisibilizou a memória negra — um processo que, como destaca a historiadora Lilia Schwarcz, submete o povo negro a uma ‘dupla morte”: a física e a da memória”, diz o parlamentar.
Inspirado por pesquisadores regionais como Luís Roberto de Francisco, André Luigi, Rodolfo Souza, Lilian Solá, Larissa Santa Rosa, entre outros, Chell tornou-se pioneiro ao desenvolver um trabalho estruturado sobre biografias de pessoas negras em Salto. Hoje, segue ampliando esse compromisso para além das fronteiras da cidade, levando seu projeto de biografias para outros municípios e contribuindo para o fortalecimento da memória negra na região.

