Espaço Acadil: Miniconto

Guilherme Del Campo
Cadeira nº 11 I Patrono Mario de Andrade

Próximo ao Natal, Gumercindo sentou-se frente ao espelho: – quantos anos terá esse maldito espelho? Herança dos avós, esteve sempre ali, ladeado por dois quadros enigmáticos, emoldurados com molduras antigas. No primeiro, via-se um cão branco perseguindo gansos apavorados, que fugiam sobre as margens de um lago. No segundo a situação se invertia, os gansos furiosos é que perseguiam o pequeno cão, que batia em retirada. Seria uma metáfora? O que o artista conseguiu esconder?

Gumercindo lembrou-se da infância, num sítio da família, onde havia apenas um rádio “capelinha” que só sintonizava a Rádio Nacional apenas à noite, durante o dia só “pipocava”. Que muitas vezes, sentado ao lado da avó perguntava, porque havia nascido no dia seis de agosto e só fora registrado no dia dezesseis. Porque haviam escolhido aquele nome antigo: Gumercindo! Porque do espelho ladeado pelos quadros? Tentava, inutilmente descobrir o desenlace das cenas.

Gumercindo correu seus velhos dedos sobre o que sobrara da sua cabeleira branca. Estava velho e sofria com a solidão. Sentia falta da companheira Matilde, já falecida, dos filhos que viviam no exterior e que prometeram vir para o Natal e do Júnior de sete anos, que ainda não conhecia. A maioria dos amigos já haviam partido para o além.

Voltou-se a mirar no velho espelho, aparelho cruel a lhe mostrar o seu estado deprimente, do velho acabado que, mal se sustentava nas pernas. O silencioso espelho profetizava respostas soturnas, maléficas, interpretando sua breve partida.

Aniversário idiota, setenta e cinco anos. Sentou-se na copa e abriu uma garrafa de whisky, que se fez derramar sobre uma pilha de cubos de gelo. O aroma do malte invadiu o ambiente. Abriu a geladeira e apanhou pedaços de queijo parmesão e gorgonzola. Derramou azeite português sobre eles e passou a degustá-los, com fatias do pão italiano que havia comprado. Ninguém ligou para cumprimentá-lo.

Começou a chover e acabou a luz. Na tentativa de obter uma vela, esbarrou na garrafa que se espatifou no chão. Gumercindo não se aborreceu, havia outras. Voltou a luz e Gumercindo foi até o quarto, vestiu-se com o velho terno azul-marinho, a camisa branca de colarinho amarelado, a gravata preta usada no luto da Matilde, meias e sapatos escuros e deitou-se na cama, imóvel, esperando a morte chegar. Dona Morte já devia estar a caminho. De repente, gritou:

– Mas que porra é essa? E se vierem para o Natal? Preciso comprar presentes, um pinheiro verdinho e decorá-lo com luzes coloridas. Armar o presépio com serragem, estradinhas sinuosas com farinha de trigo, lagos de espelhos e distribuir os personagens do presépio.  A noite vou acender lamparinas de azeite e contar ao Júnior sobre os Reis Magos, guiados pela estrela de Belém e o nascimento do Menino Jesus.Mas se ele não entender português?

– Ah, minha filha vai se haver comigo, ah se vai!