Um padre não muito católico
J.C. Arruda
Durante a ditadura militar, Itu realizou em 1968 a sua mais memorável eleição municipal. As forças de elite da cidade, representadas pela Maçonaria, Rotary, Lions, Santa Casa, Hospital Chierighini e outras, decidiram que estava na hora do município ter uma pessoa realmente qualificada para ser o futuro prefeito e assim escolheram o competente engenheiro Doutor Maurício Gun como candidato. Todos se uniram para tentar vencer o mais folclórico e querido político da história de Itu: o inesquecível Galileu Bicudo. Nessa época, Galileu já havia sido Prefeito da cidade (1956 – 1959) e exercia seu segundo mandato como deputado. A população aguardava o nome que ele iria apoiar para Prefeito, já que exercia o mandato, quando para surpresa geral, ele anunciou: “ eu mesmo serei candidato”. Foi o que levou todas as chamadas “forças-vivas” da cidade a se unirem contra ele por entenderem que lhe faltava as qualidades necessárias para voltar a ocupar o cargo. Por isso, estes encontraram no engenheiro Maurício Gun os maiores predicados para que fosse o próximo Prefeito. Ou seja, era, realmente, um candidato inatacável.
Pois, Galileu percebeu isso logo no início da campanha: o Maurício é ótimo, mas é o candidato dos ricos. Assim o candidato dos pobres, dos pés-rachados, a partir daquele momento, passou a ser Galileu Bicudo. A cidade pegou fogo, politicamente. Na terça tinha comício de Bicudo na Vila Nova, na quarta havia outro de Maurício Gun. Na sexta saia uma passeata (a pé de verdade) de Maurício, no sábado acontecia outra de Galileu. Como as duas sedes ficavam na Praça da Matriz, quando os dois grupos retornavam de seus respectivos comícios, já por volta da meia noite ou mais, o pipocar de rojões não deixava dormir quem estava acordado e acordava quem estava dormindo. Era um espetáculo até bonito de se ver.
Com o andar da campanha, era nítida a vantagem que a candidatura de Galileu ia ganhando, porque tomou conta da cidade o boato de que Maurício, por ser judeu e maçom, iria queimar tudo quanto fosse imagem católica, se fosse eleito. Imaginem, logo Maurício Gun, que fez o projeto e a planta da Igreja de Nossa Senhora Aparecida e doou à comunidade e que, como maçom, seguia o caminho de seus irmãos, sendo sempre correto, honesto, pai de família exemplar. Mas, em política, como sempre se disse, mais vale o boato do que o fato. A candidatura dele passou a murchar nitidamente.
De repente, aconteceu um fato novo, surpreendente, na campanha. Um sacerdote da igreja do Carmo, Frei Mauro, se dispôs a subir no palanque de Maurício Gun para dizer ao povo que não havia nenhum problema em que os católicos votassem em Maurício, que votar em judeu ou maçom não era pecado coisa nenhuma e que ele, mesmo sendo padre, iria votar em Maurício Gun. A maré da campanha começou a virar novamente. A atitude do padre deu novo ânimo à candidatura de Gun que retornou a crescer e abalou o grupo de Galileu. Convém não esquecer que naquele tempo, a população católica de Itu superava os 90 por cento.
Na última semana antes da eleição não dava verdadeiramente para dizer quem estava na frente. Mas, foi aí que aconteceu a reação de Galileu. Anunciou-se que uma autoridade da igreja estaria presente no maior comício da campanha, subindo no palanque de Bicudo para esclarecer em definitivo aos católicos de Itu. No dia do comício, que seria à noite, chegou à cidade o Monsenhor Ignácio do Espírito Santo, vindo de São Paulo. Percorreu as principais ruas da cidade e visitou inúmeras pessoas católicas, convocando todos a comparecerem ao comício. Desnecessário dizer que milhares de famílias compareceram à frente do palanque.
Todos os políticos falaram deixando a fala do Monsenhor (o qual se manteve o tempo todo de batina preta e uma faixa roxa na cintura) que aguardou em pé, com semblante sempre sério num dos cantos do palanque. Quando por fim chegou a vez dele, o dito Santo Homem desandou num sermão que envolveu e comoveu a todos, criticando o Frei Mauro e dizendo que os verdadeiros católicos não deveriam jamais votar em maçom, ainda mais sendo judeu. Chegou a dizer que Frei Mauro estava tomando aquela atitude porque estava deixando a batina, para se casar. Terminou com lágrimas nos olhos, exaltando a população ituana a salvar o catolicismo, votando em Galileu.
Para encurtar o assunto: Galileu Bicudo venceu a eleição e, passados alguns meses, Frei Mauro deixou mesmo a batina, para casar-se e consta que ainda é feliz na vida conjugal.
Há alguns anos, estava eu tomando café no Tonilu do Centro quando encontrei com o saudoso Flamínio Silveira Verani, que havia sido o chefe e cérebro da campanha de Galileu em 1968, e comecei a relembrar detalhes daquela epopeia. Disse-lhe que aquele Monsenhor tinha dado a vitória a Galileu. Ele me respondeu: “o homem não era Monsenhor”. Argumentei: “mesmo que fosse um simples padre, ele decidiu a eleição”. Quase tive um piripaque quando Flamínio me explicou: “o homem não era padre e menos ainda monsenhor. Havia vários padres do nosso lado na eleição, mas nenhum quis subir no palanque. O remédio foi ir até São Paulo, contratar um ator que apenas desempenhou seu papel como Monsenhor”.
Já dizia minha Tia Dita: em política, o mais bobinho conserta relógio no escuro.