Artigo: O valor da leitura

Por Giselle Bueno*

Paulo Freire elaborou uma concepção crítica da leitura que merece ser lembrada, pois vivemos imersos num fluxo frenético de textos, orais ou escritos, que, de certo modo, tecem nosso cotidiano e nos desafiam como o fazia a esfinge de Tebas: “decifra-me ou devoro-te”. Circulam diariamente notícias de jornal, obras de ficção, debates sobre política, diálogos de séries televisivas, falas de influenciadores, vídeos publicitários, conversas familiares e outra infinidade de gêneros textuais que interpelam um país ainda não de fato convencido do poder e da riqueza da leitura.

Freire parte do princípio de que a criança não alfabetizada já é capaz de ler. Para ela, os textos se encarnam em elementos da vida imediata, como o canto dos pássaros, os movimentos das nuvens, o cheiro das flores. A ideia é a de que o ato de ler, em sentido amplo, antecede a leitura da palavra escrita, de sorte que haveria uma experiência originária, profunda e criativa, de leitura do mundo.

“Para ler bem os textos, escritos ou falados, é preciso ler bem a realidade. Para ler bem a realidade, é preciso ler bem os textos. Ler e viver são gestos visceralmente imbrincados.”

Introduzida a alfabetização, a dimensão do real permanece atuante, pois a ação de ler não se consuma na mera decodificação de palavras, mas exige seu prolongamento na leitura do mundo. As duas formas de leitura encontram-se conjugadas. Para ler bem os textos, escritos ou falados, é preciso ler bem a realidade. Para ler bem a realidade, é preciso ler bem os textos. Ler e viver são gestos visceralmente imbrincados.

Outra ideia de Freire é a de que a apreensão crítica da importância do ato de ler se forma, entre outros fatores, com o próprio exercício da leitura. Quanto mais e melhor o leitor lê, mais e melhor percebe o valor da leitura e incrementa suas competências leitoras. Isso se relaciona com o fato de que a prática é crucial para todo ato de conhecimento. Como aprendemos a ler bem? Lendo. Se não nos dispusermos a conviver com nossa ignorância, com erros e limites de compreensão, provavelmente leremos pouco.      

Essa impressionante lição de humildade da leitura vale para muitas coisas da vida. É quase inevitável recordar aqui uma passagem clássica de Grande sertão: veredas, em que Riobaldo diz que viver é perigoso porque “aprender-a-viver é que é o viver, mesmo”. Não aprendemos a viver primeiro, para depois passar pela vida como peritos que sabem o que estão fazendo. Aprendemos a viver, vivendo. A leitura guarda mais esta semelhança estrutural com a vida: em ambas, é preciso aventurar-se.

Por fim, a leitura, a escrita – e também a fala – correspondem a momentos indissociáveis do processo de transformação da realidade e da própria linguagem. Segundo Freire, ao ler textos e mundo, podemos reescrevê-los ou redizê-los, transformando-os. Quando, por exemplo, o leitor lê um texto escrito e o interpreta criativamente, de algum modo o reescreve. Em certa medida, o leitor é autor de cada texto que lê; é ele quem constrói possibilidades ali contidas. Ler, reler, redizer e reescrever são ações que possuem uma força seminalmente transformadora. Nada desprezível, portanto, o valor da leitura.

*É Doutora em Letras e docente do Centro Universitário Paulistana – UniPaulistana.