Espaço Acadil: O Ano-Bom no velho Beco

Maria Lúcia A. de Marins e Dias Caselli
Cadeira nº 01 | Patrono Euclides de Marins e Dias

No trinta e um de dezembro, o pessoal do Banco da esquina permanecia trabalhando até tarde da  noite para encerrar o balanço do exercício. Portas fechadas e janelas abertas. As fortes luzes do estabelecimento ultrapassavam os vidros e as grades de ferro, clareando a rua estreita e as calçadas paralelas que acompanhavam-lhe o traçado sinuoso. O cenário representava exceção à regra. Na maior parte dos dias o beco era mal iluminado, ponto furtivo de encontro de arrojados casais de namorados.

Em torno das vinte e três horas já não se ouviam os ruídos das registradoras, nem as palavras codificadas dos funcionários conferindo os resultados. Passávamos agora a aguardar em casa a presença de nosso pai, o gerente da agência. A azáfama da conferência dos números terminara. Aos poucos apagavam-se as lâmpadas enquanto os bancários, nos degraus da porta, se despediam. Abraçavam-se, desejando uns aos outros as boas entradas. Afinal somente voltariam a se encontrar no próximo ano. O beco retornava por momentos ao tradicional sossego e à costumeira penumbra. Apenas por momentos porque ao redor da meia- noite os retângulos das janelas e das portas iam se acendendo, desenhando-se as silhuetas dos moradores.

Nosso avô, sempre apressado e à frente da hora, ao tempo em que residiu conosco, gostava de percutir o poste mais próximo com uma barra de ferro cilíndrica, produzindo um som estridente que nos lembrava o trinado agudo das arapongas. Só parava quando o relógio da Matriz, perfeitamente audível do local, batesse a duodécima badalada. Depois subia rapidamente a escada do sobrado para abraçar os familiares, lhes desejar “Feliz Ano Novo” e participar da ceia festiva.

No prédio dos Cury, infalivelmente à meia-noite, D. Adélia lançava da sacada uma xícara repleta de arroz, que se espatifava ao solo e espalhava o cereal, a prognosticar fartura.

No portãozinho do andar térreo se postavam os Belcufiné. No outro sobrado à frente apareciam os De Francisco e depois os Sproesser. No terraço interno do bonito casarão da esquina, hoje pertencente ao Jair de Oliveira, podíamos anotar as presenças, primeiro, da família José Balduino do Amaral Gurgel, depois dos Silveira Arruda (seu Jarbas, D. Yara e filhas), após, do casal Miguel Rizzo e, em nossos últimos tempos de beco, da pianista Eglantina Galvão e do esposo, Odilon Bueno Couto.

Os vizinhos mais próximos se cumprimentavam e acenavam para os mais distantes. Auguravam-se todos um Feliz Ano Novo.

Na manhã do primeiro do ano, despertávamos com as vozes madrugadoras de nosso pai e do seu Afonso Guido, cumprimentando-se efusivamente, com a alegria reservada aos amigos. Seu Afonso se encaminhava ao Açougue, conforme comumente o fazia nos dias úteis, desta feita para proceder à entrega de algum quarto de leitoa ou peso de linguiça, a eventual consumidor retardatário. Não queria decepcionar a freguesia.

Sempre acordávamos felizes e esperançosos no dia da Confraternização Universal. A verdade é que existiam guerras e desavenças, mas longe, muito longe de nós. Ali, naquele pequeno trecho de rua só viviam confraternos, no universo da nossa simpática vizinhança.

Assim transcorria o Ano-Bom no velho beco.