Legado olímpico

Por Lucas Gandia

Da grandiosa abertura às consagrações de atletas como Usain Bolt e Michael Phelps. Os Jogos Olímpicos Rio 2016 foram marcados por momentos únicos, que não vão sair da memória dos apaixonados pelo esporte. Mas nem só de medalhas se faz uma Olimpíada. Encontro de povos e culturas completamente diferentes, o evento se tornou uma grande experiência antropológica e sociológica. Tudo aqui, bem perto dos nossos olhos.

Em plena era da comunicação digital, nenhum momento ficou de fora das lentes profissionais e amadoras que lotaram ginásios e arenas cariocas. Em meio a flashs e vídeos, as redes sociais ganharam um papel ainda mais importante nestas duas últimas semanas: mais que transmitir as conquistas dos atletas, escancararam os preconceitos de um país contraditório – ainda que bonito por natureza.

Primeiro ouro do Brasil nestas Olimpíadas, após a vitória na categoria dos leves, a judoca Rafaela Silva pôs fim a um drama iniciado nos Jogos de 2012, quando foi desclassificada da competição. Na ocasião, a atleta foi vítima de racismo no Twitter, o que quase a levou a desistir do esporte. “Já passou, tem quatro anos. Eu só posso falar: o macaco que tinha que estar na jaula em Londres hoje é campeão olímpico em casa. Hoje eu não sou a vergonha para a minha família”, declarou a brasileira.

Um dia depois da conquista de Rafaela, mais uma prova de que estamos longe de caminhar em direção à civilidade. Após ser a última colocada de uma série eliminatória dos 200m borboleta, Joanna Maranhão foi alvo de insultos em suas redes sociais por causa dos maus resultados. No meio da enxurrada de ódio, teve até quem desejasse o estupro da nadadora pernambucana, conhecida por seus posicionamentos fortes no campo político. E pior: na tentativa de minimizar a gravidade do ato, alguns internautas ainda apontaram que Joanna nunca obteve grandes marcas em disputas internacionais. Como assim? Existe justificativa para o injustificável? E, mais uma vez, nos deparamos com o velho machismo mascarado pela hipocrisia nacional.

Na última segunda-feira (15), a vitória do brasileiro Thiago Braz da Silva no salto com vara levou os espectadores à loucura no estádio olímpico e emocionou o país inteiro. Abandonado pelos pais quando ainda era menino, o jovem de Marília (SP) ficou dias com uma mochila nas costas para aguardar o retorno deles. Coube aos avós a educação do futuro campeão. Será que a mesma “tradicional família brasileira” que tanto aplaude o Thiago de hoje acolheria a criança abandonada de ontem?

E no boxe, mais uma porrada na cara de quem reclama dos maus resultados nacionais nas Olimpíadas, mas muito pouco conhece sobre a trajetória sofrida de quem persiste no esporte em nosso país. Dono do primeiro ouro olímpico do Brasil na modalidade, Robson Conceição, de 27 anos, é de origem humilde e não mantém contato com o pai. Crescido com a avó e a mãe em um bairro periférico do Salvador (BA), o pugilista percorria as ruas para treinar quando era menino. Para se sustentar, fazia bicos e quase não dormia. Entre os estudos e o boxe, escolheu o segundo.

O que dizer então do histórico de Arthur Zanetti, que, devido à falta de apoio e estrutura para treinamento, quase o levou a defender outro país? Isso tudo depois de conquistar o primeiro ouro olímpico brasileiro na ginástica artística, nos Jogos de Londres, há quatro anos.

Os casos citados são apenas alguns dos muitos exemplos espalhados de norte a sul. Por aqui, a cada quatro anos, cobram ouro de quem recebe apenas migalhas – uns mais, outros menos. Mas ainda assim migalhas para o nível profissional. Quantas Rafaelas, Thiagos, Robsons e Zanettis terão que surgir para que o Poder Público e a iniciativa privada passem a apoiar – pra valer – o esporte nacional? Quantos preconceitos terão de ser superados para que nossos atletas tenham o direito de seguir as carreiras a que tanto se dedicam? Quantas vidas terão que ser transformadas para enxergarmos a prática esportiva como ferramenta de transformação?

Nada de ginásios equipados, piscinas modernas ou estádios reformados. Se um dia o Brasil encarar o esporte como política pública social, aí sim poderemos falar em legado olímpico. Quero estar vivo para ver nosso país ganhar a medalha de ouro.